Esquecidos
- Carlos Mossmann
- há 10 minutos
- 4 min de leitura
Um livro que escancara a realidade dos invisíveis nas ruas, misturando poesia e fotografia para provocar reflexão e mobilizar olhares atentos à exclusão social

O que vemos quando cruzamos com alguém invisível? “Esquecidos”, de Hugo Bengtsson Neto, enviado pelo Grupo Editorial Quixote (Quixote & Ophelia), não permite que desviemos o olhar. É uma obra capaz de desconcertar, de provocar uma inquietação necessária em quem vê e lê.
Quando pensamos em poesia, imaginamos beleza, suavidade, sentimentos elevados. O próprio termo, que vem do grego poiesis, significa criação ou invenção e sugere algo delicado, feito para encantar. Mas, ao abrir “Esquecidos”, deparamo-nos com versos que rasgam, denunciam e não suavizam a dor nem escondem o descaso. Aqui, a poesia possui força suficiente para escancarar a indiferença, expor corpos e vidas descartadas e provocar desconforto.
A potência do livro não está apenas nas palavras, pois o diálogo entre poesia e fotografia amplia o impacto de cada página. As imagens, sempre em preto e branco, não apenas ilustram, mas ecoam e aprofundam o que os poemas sugerem. Essa escolha reforça a atmosfera de urgência e denúncia, tornando impossível permanecer indiferente ao que se vê e se lê. O projeto gráfico sóbrio contribui para uma experiência sensorial, envolvente e, na medida certa, desconfortável.
Vivemos um tempo em que a população em situação de rua cresce nas grandes cidades brasileiras, enquanto discursos de invisibilização se repetem diariamente. Nesse contexto, “Esquecidos” é mais do que necessário, pois o livro não só documenta, mas humaniza, trazendo à tona histórias que a rotina insiste em empurrar para as margens.

Na contracapa, o autor afirma que esta é uma obra sobre lembranças. Embora o título remeta ao esquecimento, essa aparente contradição faz sentido, já que só conseguimos lembrar daquilo que, em algum momento, deixamos de enxergar. Dessa forma, a obra desafia o leitor a sair da zona de conforto, mostrando que o esquecimento é uma escolha social, frequentemente violenta.
É impossível não associar a leitura ao conceito de necropolítica, criado por Achille Mbembe. Para contextualizar, Mbembe, ao citar Fanon, explica como o poder da morte opera em sociedades marcadas pela exclusão. Nesse caso, a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é. Ele escreve: “Frantz Fanon descreve de maneira espantosa a espacialização da ocupação colonial. Para ele, a ocupação colonial implica, acima de tudo, uma divisão do espaço em compartimentos. Envolve a definição de limites e fronteiras internas, representadas por quartéis e delegacias de polícia; está regulada pela linguagem da força pura, presença imediata e ação direta e frequente; e isso se baseia no princípio da exclusividade recíproca. Todavia, o mais importante é o modo como o poder da morte opera: ‘A cidade do colonizado [...] é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, uma cidade ajoelhada.’”
O livro de Bengtsson Neto, ao expor corpos e vidas ignoradas, revela como nossa sociedade ainda compartilha essa lógica de compartimentação e exclusão, atualizando o que Fanon e Mbembe apontaram. Quem vive à margem é submetido a uma existência de invisibilidade e privação, marcada por fronteiras rígidas, sejam elas físicas ou simbólicas.
Entre tantos poemas marcantes, destaco um trecho que, para mim, resume o sentimento do livro:
à margem
escorrem
suor
lágrimas
sangue
em velhas imagens
perdido
em tempos
no tempo
em existências
uma angústia que não desce
uma ou várias
não sabe
que transforma em mágoa
que transforma em rancor
que transforma em ódio
prefere atirar pedras no espelho
esperando o tempo passar
conversando com ratos
na solidão voluntária
na noite
no dia
sem perceber o anoitecer

Como ativista da causa animal e protetor no sertão do Ceará, outra cena do livro me atravessou: o amor incondicional dos animais, que não buscam riqueza nem conforto, apenas afeto. Animais que, por algum motivo, foram abandonados à própria sorte nas ruas e que encontram carinho e parceria entre aqueles que também foram deixados à margem. As fotografias mostram cães repousando ao lado de pessoas em situação de rua, partilhando cobertores, solidão e, sobretudo, cuidado mútuo. O olhar desses animais, assim como o dos humanos retratados, carrega uma esperança silenciosa e uma dignidade muitas vezes negada por quem passa apressado. Essa relação de afeto desinteressado revela que, mesmo nos contextos mais adversos, há espaço para o encontro, o cuidado e a criação de laços que desafiam a lógica do abandono. Essas imagens me tocaram profundamente. Escancaram uma verdade que tantas vezes ignoramos: nas ruas, enquanto muitos fecham os olhos para o sofrimento, animais e humanos se reconhecem e acolhem, partilhando o pouco que têm, e isso talvez seja o que mais nos humaniza.
Lendo “Esquecidos”, revisitei meus próprios silêncios e desconfortos. Quantas vezes, caminhando pelo centro da cidade, desviei o olhar para não ver o que o livro escancara? A obra me obriga a enfrentar a indiferença cotidiana e a repensar meu papel diante dessas realidades.

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