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Entre o céu e o porão: a urgência de O Navio Negreiro

Como Castro Alves transformou a retórica em ato público contra a ordem escravista, e por que isso ainda nos convoca


Castro Alves; O Navio Negreiro; escravidão no Brasil; poesia abolicionista; literatura brasileira.
Foto © Carlos Mossmann. O Navio NegreiroAntofágica, 2022.

O Navio Negreiro, de Castro Alves, irrompe em 1868 e, em 1870, encontra a página. Poesia-armadura, lâmina de verso contra a escravidão. Ainda hoje nos força a encarar o porão, esse arquivo submerso, da nossa história. A abertura nos revela um mar vasto, belo, quase hipnótico: “‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço / Brinca o luar, dourada borboleta.” É o encanto antes do abismo, o verniz que prepara o estalo.


O fascínio se adensa: “‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos / Ali se estreitam num abraço insano”, até que surge o brigue, cortando as ondas: “‘Veleiro brigue corre à flor dos mares”. O eu lírico quer beber essa “selvagem, livre poesia”. No ouvido, o cenário ganha som: “Orquestra é o mar, que ruge pela proa”. O enlevo parece inesgotável. A exaltação sobe o tom: “Meu Deus! como é sublime um canto ardente”. Do sublime se ergue o choque. O poema sobe para colher fôlego e afundar. “Albatroz! [...] dá-me estas asas” pede altura para que a queda pese.


Não há excesso gratuito. Alfredo Bosi observa que a indignação de Castro Alves se faz imagem grandiosa, trabalhando com natureza, história e religião como matéria poética (Bosi, 1970, p. 127). O excesso é a lente que amplia o corte, exagera para revelar. E, quando o poema desce ao porão, o brilho do mar se transmuta em acusação, e a beleza passa a nomear a violência, sem estetizar o trauma; o poema também aponta para a resistência e a dignidade dos escravizados.


Castro Alves; O Navio Negreiro; escravidão no Brasil; poesia abolicionista; literatura brasileira.
Foto © Carlos Mossmann. O Navio Negreiro — Antofágica, 2022.

É então que irrompe a pergunta que devolve rosto ao anônimo: “Quem são estes?”. Em vez de cifras, surgem origens e paisagens como o Saara e a Serra Leoa, e figuras bíblicas como Agar e Ismael. A névoa do apagamento se desfaz. Por trás do porão, a contabilidade: “o negro foi trazido para preencher o papel de força de trabalho compulsório (...) para produzir para o mercado” (Pinsky, 1992, p. 21). O poema reage com nomes e histórias, e condensa o horror numa linha cortante: ontem, liberdade; hoje, nem morrer.


A forma sustenta a virada. Em seis partes e 34 estrofes, o ritmo pulsa conforme a cena. No início, as imagens cintilam: “Os astros saltam como espumas de ouro... / O mar em troca acende as ardentias”. Depois, o compasso acelera e endurece quando a violência irrompe. O andamento do verso é argumento.


No desfecho, o golpe visita os símbolos do país. A bandeira auriverde, que sonharia esperança, aparece atada à vergonha. Manuel Bandeira recorda que o poema fecha com três oitavas reais, liga de revolta e tristeza diante de um pavilhão que recobre infâmia e covardia. O mar deixa de ser paisagem e se torna testemunha; a cena se faz tribunal; os versos, prova. O poema inteiro funciona como peça de acusação.


O tempo não desmente essa leitura. Bosi escreve que ler os poemas sociais de Castro Alves é tocar a corrente da História, e “Vozes d’África” e “O Navio Negreiro” soaram, e soam, como falas de rebeldia (Bosi, 2005, p. 201). Daí a persistência do alcance.


Reler O Navio Negreiro hoje é antídoto contra a anestesia. Descortina o porão que sustenta nossa modernidade e lembra que a abolição veio de pressão e luta, não de benesse, e essa luta teve protagonismo negro, de quilombos a mobilizações urbanas. Entre a beleza inaugural, “Embaixo, o mar, em cima, o firmamento... / E no mar e no céu, a imensidade”, e a memória da dor, fica a pergunta: usamos a língua para lavar a bandeira, ou lavamos as mãos e viramos o rosto? Castro Alves tenta lavar e nos convoca. No fim, não é o mar que decide. Somos nós.


Castro Alves; O Navio Negreiro; escravidão no Brasil; poesia abolicionista; literatura brasileira.
Foto © Carlos Mossmann. O Navio Negreiro — Antofágica, 2022.

Referências:

Alves, Castro. O Navio Negreiro. 1. ed. Antofágica, 2022.

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.

Bosi, Alfredo. Dialética da colonização. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Pinsky, Jaime. A escravidão no Brasil. São Paulo: Contexto, 1992.


Informações editoriais:

Autor: Castro Alves

Ilustrações: Mulambö

Número de páginas: 256

Dimensões: 18 x 12 x 1.62

Formato: Capa dura

ISBN: 9786586490497

Edição:

Ano de publicação: 2022

Peso: 290 g

SKU: 9786586490497

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