À sombra de Fausto, o romance que nasce entre viagens, pesquisa exaustiva e dilemas morais
- Carlos Mossmann
- há 3 dias
- 3 min de leitura
Entre Lisboa e um inferno íntimo, a viagem que se torna pacto

O que é o mal e até onde ele se infiltra na experiência humana? A pergunta sustenta “À sombra de Fausto: de Lisboa a Roma”, romance de Nelson Ricardo Reis que reúne autobiografia ficcional, fôlego histórico, diálogos filosóficos e uma investigação sensível sobre arte, religião e criação literária. Escrita ao longo de sete anos, a obra nasce de uma viagem do autor a Portugal e se expande para reflexões que atravessam a iconografia medieval do diabo, a arquitetura renascentista e ecos rosianos.
A primeira visita a Lisboa funciona como eixo afetivo e narrativo do livro. Muitas das situações vividas pelo protagonista brotam de experiências reais, como o encontro com o livreiro Ernesto, figura marcante da cidade. A livraria existiu, o livreiro existiu, e foi ele quem conduziu o autor ao quarto onde Fernando Pessoa costumava dormir. Dessa lembrança surgiram camadas imaginadas, entre elas a passagem subterrânea repleta de livros sobre o demônio, imagem que entrelaça memória e invenção.
A pesquisa que sustenta o romance é extensa. Nelson percorreu a tradição faustiana, leu biografias do diabo, examinou a evolução da figura demoníaca na Idade Média, estudou a incorporação de símbolos pagãos pelo catolicismo e revisitou debates teológicos que moldaram a ideia de tentação e queda moral. Mergulhou também em estudos sobre Filippo Brunelleschi, arquitetura renascentista e artes plásticas, integrando esse repertório à narrativa por meio de diálogos que soam naturais, quase conversas captadas ao acaso.
Esse equilíbrio entre densidade e clareza é um dos aspectos mais marcantes do livro. Nelson buscou criar uma narrativa profunda sem ser hermética, capaz de provocar o leitor sem afastá-lo. As discussões entre os personagens, que tangenciam filosofia, teologia e crítica literária, aparecem com leveza, como se o leitor fosse convidado a caminhar ao lado deles.
No centro das tensões está Ariman, figura que encarna tentação e degradação moral. A aproximação do protagonista com essa presença obscura provoca um esvaziamento ético gradual, perceptível em gestos que revelam sua contaminação progressiva. A corrosão do narrador, marcada por escolhas cada vez mais sombrias, dialoga com a tradição literária em que o mal se torna força criadora, de Goethe a Thomas Mann e também na leitura de Guimarães Rosa.
A presença de Grande Sertão: Veredas é estruturante. Nelson estudou profundamente o romance e transforma suas reflexões em um dos capítulos mais luminosos do livro, no qual insere um diálogo em um trem com um professor alemão para discutir a força simbólica do mal na obra de Rosa. Ali, o protagonista confronta a complexidade desse imaginário, filtrado pela ficção e pelas inquietações do próprio autor.
A narrativa também reflete sobre a relação entre arte e sofrimento. Nelson reconhece que muitos criadores transmutaram suas dores em obras inesquecíveis, mas recusa a ideia de que a angústia seja o único caminho possível. Recorda autores que produziram longe de tragédias pessoais, reforçando que cada criação nasce de um território emocional singular.









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