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A crítica social em Amar, Verbo Intransitivo

Uma análise das tensões entre identidade, desejo e exclusão social no romance modernista de Mário de Andrade


Foto: Carlos Mossmann
Foto: Carlos Mossmann

Existem livros que iluminam, mas também nos obrigam a revisitar nossos próprios labirintos históricos. Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, publicado em 1927 durante o fervor modernista, é um desses raros espelhos que, quando elevados ao céu, como na imagem da minha delicada edição nano da Antofágica, refletem nuvens e, ao mesmo tempo, projetam as sombras persistentes de um passado que, embora distante, segue influenciando o presente. São vestígios que, à época, dialogavam com os discursos eugenistas e higienistas então em circulação no país.


Com sua prosa inquieta, Mário de Andrade expõe o ambiente silencioso da burguesia nacional recém-enriquecida, herdeira de uma sociedade que ainda carregava vestígios de uma economia rural arcaica, mas já aspirava ao brilho do progresso moderno. Famílias como a dos Sousa Costa, preocupadas em preservar sua recente prosperidade, buscavam proteger seus filhos dos riscos morais trazidos pela cidade em transformação. Para isso, esforçavam-se em afastá-los de contatos considerados inferiores, especialmente relações amorosas e laços sociais que pudessem ameaçar a “pureza” da linhagem e o futuro do patrimônio familiar.


É nesse cenário que surge Elza, a governanta alemã. Sua presença não se deve ao acaso. Ela encarna o mito da superioridade europeia, branca e racional. Funciona como uma vacina contra o “contágio” das classes populares, contra a mestiçagem e contra qualquer desejo que desafiasse a ordem dominante. O projeto da família não se limita à pedagogia, pois representa uma tentativa de saneamento étnico e social, uma experiência tropical voltada à formação de um herdeiro à moda estrangeira, imune à contaminação dos afetos e da cultura local. Elza, mais que pessoa, é um sintoma do Brasil que desejava se negar. Um país que sonhava em branquear-se ao silenciar sua própria pluralidade.


O papel de Elza vai muito além do que sugerem os manuais burgueses. Ela não é apenas iniciadora sexual, mas instrumento de profilaxia, escudo erguido entre Carlos e as aventureiras que rondam a cidade. Atua no amadurecimento moral do rapaz, mas também na proteção dos bens e do nome da família, para que não se percam nos meandros mestiços da urbe. Sua tarefa é paradoxal, pois deve ensinar a amar, mas sob a vigilância dos interesses da casa, garantindo que o desejo não escape ao controle e que o legado não se dissipe.


Mário de Andrade, com lirismo e ironia, tece uma crítica incômoda e atual. Este romance, ainda hoje, aponta o dedo para elites que persistem em resistir à mestiçagem e à pluralidade do país. O Brasil, terra de contrastes, foi e é visto por essas camadas como um projeto inacabado, sempre à espera de aperfeiçoamento estrangeiro. A obsessão pela “pureza do sangue” e pela defesa do patrimônio denuncia, no fundo, a recusa ao hibridismo e à vitalidade popular que nos constitui. Ao adotar uma narração que mimetiza e expõe ao ridículo os rituais da pedagogia burguesa, Mário desmonta a lógica dominante de dentro para fora, mostrando suas fissuras.


Elza carrega, assim, o fardo da ambivalência. Representa a cultura hegemônica e, ao mesmo tempo, é obrigada por necessidades econômicas a vender-se ao desejo do outro. Mestra, vigilante, cortesã, seu percurso revela a contradição central do país: uma nação que se envergonha de si e tenta, em vão, apagar a própria memória.


A denúncia de Mário não pertence só ao passado. Ela ecoa, persistente, cada vez que se tenta negar o valor do encontro, da mistura, da diversidade. Ainda hoje, o impulso de exclusão e higienização ressurge em discursos que buscam separar, hierarquizar e negar a riqueza do múltiplo. Talvez reste a nós, leitores, a coragem de sustentar o espelho deste romance diante do rosto e, nesse reflexo, reinventar, enfim, o próprio sentido do verbo amar.



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