O que resta quando a memória falha? “A Procura de Martina”
- Carlos Mossmann
- 19 de ago.
- 2 min de leitura
Quando a lembrança falha, os vestígios contam a história que a política silenciou.

“A Procura de Martina” atravessa o tempo como quem busca sentido entre escombros e ecos. Tudo começa com uma urgência: uma mulher, à beira do esquecimento, precisa encontrar o neto, nascido nos subterrâneos da ditadura, antes que a própria lembrança se desfaleça. Brasil e Uruguai unem-se nesta coprodução para ecoar, ainda hoje, os efeitos da repressão argentina nas gerações latino-americanas.

Inspirada nos relatos das Avós da Praça de Maio, mulheres que transformam a busca em resistência, a narrativa de Márcia Faria faz do Alzheimer uma metáfora viva do esquecimento coletivo. O longa trata de reencontros, rastros e fragmentos que sobrevivem ao tempo, tentativas de nomear aquilo que a violência silenciou. Mercedes Morán encarna essa avó com força discreta, acompanhada por Luciana Paes e Carla Ribas, que dão voz às personagens brasileiras dessa travessia.
No centro da história, arde um desconforto: uma mulher luta contra o colapso de si mesma para entregar a outro — talvez neto, talvez espelho — o fio tênue de sua identidade. Brasil e Argentina, ligados pela Operação Condor, surgem como ruídos de fundo, persistentes e impossíveis de ignorar. No desencontro dos idiomas, o filme revela que recordar é sempre traduzir, e toda tradução é imperfeita, embora necessária.

A direção recusa atalhos de catarse, preferindo silêncios carregados e gestos suspensos. Não há trilha sonora para embalar a dor, nem discursos para explicá-la. A política aparece como cicatriz discreta, porém indelével. O humor rarefeito e o comentário político, por vezes, diluem o peso do tema, mas a crônica íntima e o memorial público se mantêm em tensão.
Quando a dramaturgia vacila, Mercedes Morán ancora a experiência, trazendo exaustão e lampejos de lucidez, compondo um corpo que resiste sem pedir piedade. Ao deslocar a busca para o Rio, o filme intensifica sua metáfora, apresentando o Brasil como território de memórias adiadas, um país onde o esquecimento se impõe como rotina. A avó, ao perder palavras, sussurra a uma nação adormecida que é preciso nomear, mesmo quando a voz falha.
As exibições para as Avós da Praça de Maio e o reconhecimento em Mar del Plata e no Uruguai ampliam o alcance desse gesto, pois, se a justiça tarda, o cinema antecipa a escuta e, às vezes, a reparação.
A narrativa do longa não fecha feridas, nem promete reconciliações fáceis entre o íntimo e o coletivo. O filme devolve uma pergunta: o que resiste quando tudo ao redor se dissolve? Talvez reste um vestígio, uma foto desbotada, um nome mal dito, um sotaque que denuncia origens. Talvez reste a rede de mulheres, fiandeiras da memória, amparando a protagonista como quem protege um arquivo vivo.

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