Ruína e impunidade: quando a casa cala, a história grita
- Carlos Mossmann
- 25 de ago.
- 5 min de leitura
O caso Bonetti expõe a persistência da escravidão no presente e a paraestrutura do racismo que transforma curiosidade em espetáculo e crime em prescrição

Assisti à série A Mulher da Casa Abandonada da Prime Video, desdobramento do podcast de Chico Felitti que, em 2022, transformou uma curiosidade de bairro em espelho social incômodo. O documentário e o podcast investigam Margarida Bonetti, herdeira paulistana que, ao lado do então marido, Renê Bonetti, manteve por cerca de duas décadas uma trabalhadora brasileira em condições análogas à escravidão nos Estados Unidos. À primeira vista, a mansão decadente num bairro rico de São Paulo, com lençóis nas janelas e rumores a cercá-la, parece cenário de lenda urbana. Mas a estética do bizarro é apenas a porta de entrada, do outro lado, há uma engrenagem de violência, privilégio e conivência.
Dar nome às coisas é gesto político. A vítima é Hilda Rosa dos Santos, mulher brasileira, analfabeta, levada ao fim dos anos 1970 para os EUA, onde foi mantida em servidão, sem salário, sob agressões físicas, com a vida sequestrada pela ficção da “família que acolhe”. O eufemismo jurídico “condição análoga à escravidão” tenta tornar suportável o insuportável, mas a série e o podcast devolvem à palavra seu peso histórico, escravidão no presente. Em Sodré (2023), a passagem da escravidão legal para sua persistência social aparece como permanência da “forma social escravista” após 1888 (p. 62). Hilda conseguiu fugir, denunciou os Bonetti e provocou investigação do FBI. Renê foi julgado e condenado nos Estados Unidos; Margarida, porém, retornou ao Brasil, ocultou-se sob o nome de Maria e se abrigou na casa que, ao mesmo tempo, a escondia e a expunha. Aqui, o caso prescreveu, e a Justiça ficou pela metade, cenário coerente com a observação de que “no Brasil, a estrutura legal foi montada para o sistema não funcionar” (p. 42).

Nessa assimetria, a condenação de um e o sumiço da outra, delineia-se como fronteiras e tempos jurídicos produzem impunidades. A casa abandonada torna-se monumento involuntário desse intervalo, um país onde o tempo corrói paredes, mas nem sempre alcança crimes. Enquanto isso, a vida segue, Renê manteve a carreira de engenheiro, Margarida permanece fora dos holofotes, Hilda vive hoje nos EUA, sustentada por indenização. Salta aos olhos a geometria moral, de um lado, prestígio, de outro, invisibilidade, ao centro, uma mulher cuja história exige reparação financeira, porque a reparação plena, de tempo e dignidade, é irrecuperável. A crítica de Sodré à democracia “internamente perversa”, que mantém “cidadãos de segunda classe”, ilumina esse vazio de justiça (p. 16).
O interesse público despertado em 2022 não só gerou audiência e empurrou o debate para fora do nicho, como também alcançou a esfera normativa. O caso teve impacto nos Estados Unidos, contribuindo para a criação de lei de proteção a vítimas de trabalho forçado. Que um episódio individual reverbere em mudança legislativa revela duas coisas, a potência da investigação jornalística quando recusa exotizar a violência e a inscreve como problema estrutural, e a contradição de precisarmos de espetáculo para que o óbvio, ninguém deve ser escravizado, vire agenda. Ao mesmo tempo, Sodré mostra como a “cobertura apenas factual” invisibiliza o fenômeno quando não enfrenta suas causas e sua forma social persistente (p. 144).

A série e o podcast, produzidos pela Folha de São Paulo e por Chico Felitti, exibem bastidores, documentos e vozes que impedem reduzir tudo a anedota de bairro. Mostram, por exemplo, como a figura da “mulher excêntrica” virou ponto turístico, alimentando selfies e tours improvisados. Há aí um risco ético, quando a violência vira atração, a dor alheia é reencenada como performance, processo que Sodré associa à “carnavalização” e ao mascaramento do racismo no espaço público (p. 128). O mérito da produção está em deslocar o foco. Mais do que decifrar a máscara, importa entender a máquina social que a produz, e que continua produzindo muitas Hildas, no Brasil e fora dele. No vocabulário de Sodré, trata-se de ver a “relação racial” para além do termo enganoso “raça”, palavra que carrega “o cadáver insepulto” de um conceito odioso, o que persiste é a relação social atravessada pela diferença cromática (A passagem ao ato racista).
O caso ultrapassa o casal Bonetti. Ilumina um padrão brasileiro de longa duração, enraizado no racismo estrutural e paraestrutural, e numa economia doméstica que barateia a vida de quem serve, jornadas sem contrato, quartos sem janela, retenção de documentos, “crias” que trabalham em troca de teto, diaristas sempre de plantão, migrantes agenciados por redes informais. Como propõe Sodré, mais do que “estrutura” rígida, o racismo brasileiro opera como “paraestrutura”, um processo “ao lado” do sistema, “mudou o jogo (estrutura), porém ficaram as peças imersas no imaginário escravista” (p. 36). O país que se gaba de tratar empregados “como da família” frequentemente confunde intimidade com hierarquia, carinho com controle, e naturaliza que o conforto de uns seja subsidiado pelo cansaço de outros, exemplo da “lógica do lugar” que preserva distâncias e posições (p. 139).
As respostas institucionais importam, fiscalização, listas sujas, tipificações penais, políticas de proteção e regularização do trabalho doméstico. O legado jurídico nos EUA, impulsionado por Hilda, mostra que a lei pode aprender com a dor. Mas a lei chega tarde quando a moral coletiva abriga o abuso. No Brasil, negar o racismo enquanto se reproduz a exclusão é o “duplo vínculo” descrito por Sodré, “nega-se o fenômeno, mas ao mesmo tempo se exclui”, e o racismo “não ousa confessar o seu nome” (p. 129). Romper com essa moral exige mais do que indignação episódica. Supõe, no plano íntimo, recusar o “jeitinho” que transforma a necessidade do outro em disponibilidade ilimitada, e, no plano coletivo, apoiar organizações que acolhem vítimas, pressionar por orçamento e políticas públicas, formalizar relações, garantir inspeções e responsabilizações efetivas, inclusive transnacionais. É também tornar visível quem foi sistematicamente invisibilizado, pois “a cobertura apenas factual… é um modo indireto de invisibilizá-lo” (p. 144).









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