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Roberto Birindelli | Entre a cicatriz e o amuleto

Ele fez da presença um ofício e da cicatriz um amuleto. A história de Roberto Birindelli é sobre habitar o tempo com verdade


Roberto Birindelli por Jefferson Karnal
Roberto Birindelli por Vinícius Monchizuki 

Nascido em Montevidéu, entre o concreto e o devaneio, Roberto Birindelli aprendeu cedo que a arte nasce do olhar. Ainda menino, buscava no riso do outro uma forma de consolo, como quem descobre que o palco pode caber em uma esquina. Desde então, tem vivido entre o desenho e o gesto, entre o silêncio e o espanto.


Sua mãe o levava ao teatro, onde um espetáculo da Companhia Italiana que encenava A Divina Comédia, de Dante, o marcou de forma definitiva. “Me reportava para dentro daquele mundo”, lembra o ator, que aos cinco anos já estudava pintura e desenho no Ateneu de Montevidéu.


Aos quinze, a mudança para Porto Alegre abriria novos caminhos. “Fiz faculdade de Arquitetura, e lá tive um colega mímico. Comecei a trabalhar com ele, me interessei pela dança moderna e contemporânea, escrevi livros de poesia marginal nos anos 80. Daí para o teatro foi um pulo.” Da arquitetura ao palco, o ator construiu um percurso que mescla técnica e sensibilidade.


“A arquitetura reflete um pensamento social. Sonhos, medos e desejos transformados em ruas e paredes”, diz.

Durante nove anos, dividiu o tempo entre os estudos, a vida de empreendedor e a pesquisa cênica. Formou-se em Artes Cênicas, lecionou, ministrou oficinas em mais de 150 cidades e aprofundou-se em escolas que marcaram gerações. “Com Lecoq trabalhei o cômico, a comédia dell’arte e a mímica. Com Gaulier, clown e bufão. Com Eugenio Barba, todos os princípios da presença cênica, do estar em vida. Ele foi meu maior mestre.”


Roberto Birindelli por Jefferson Karnal
Roberto Birindelli por Vinícius Monchizuki 

De cada encontro, Roberto guarda uma lição. Uma das mais preciosas veio de Philippe Gaulier, que lhe disse: “Você costuma estar correto, mas isso não é suficiente. Tente errar com classe.” Foi assim, entre a precisão e o risco, que ele aprendeu a habitar o palco.


Com Il Primo Mirácolo, percorreu nove países e mais de 180 cidades ao longo de 21 anos. “Passei por experiências muito diferentes. A peça é uma sátira sobre valores sociais, segregação e preconceitos. Isso muda em cada lugar, e eu adapto a peça a cada uma dessas realidades. Era o palco onde aplicava as técnicas e os materiais que pesquisava em cada momento.” O espetáculo cresceu junto com ele, transformando-se em espelho de época, de corpo e de mundo.


Entre tantas viagens, a arte o levou a cruzar fronteiras não apenas geográficas, mas também humanas. Em Estocolmo, viveu um episódio que nunca esqueceu. “Apresentava Invisible Cities, com o grupo Potlach. Uma mulher muçulmana assistia ao espetáculo usando hijab. Peguei um pano, improvisei um igual, mas mostrei que isso me impedia de cantar e fui tirando. Ela tirou o dela e começou a cantar comigo. Fiquei muito nervoso, porque aquilo podia representar até a morte dela. No final, meu diretor disse: você mudou pra sempre a vida de uma pessoa. Teu trabalho já fez sentido.”


Roberto Birindelli por Jefferson Karnal
Roberto Birindelli por Vinícius Monchizuki 

Do palco à câmera, seguiu multiplicando corpos e vozes, sempre guiado pela mesma inquietação. Na televisão, Birindelli se destacou em produções como Império, Além do Tempo e Um Contra Todos, na qual viveu Pepe, um dos papéis que mais o transformaram.


“Busco sempre personagens complexos, que não sejam facilmente catalogáveis e tenham uma curva dramática interessante. Decido meus trabalhos pela densidade dos personagens, mais do que pelo veículo.”

Antes da arte se tornar profissão, foi empresário e palestrante. Essa vivência fora dos palcos o ensinou sobre o poder da criação em qualquer contexto. “Os processos criativos nunca são chatos. No mundo corporativo, muitos brigam para se diferenciar, mas teriam mais resultados se focassem nos sonhos, na compreensão e no encantamento do cliente, o espectador.”


Quando questionado sobre a origem da vocação, Roberto volta à infância. “Lembro em Montevidéu, eu tinha cinco ou seis anos. Vi um senhor bem velho chorando e travei. Soltei da mão da minha mãe e só parei quando ele estava rindo. Continuo fazendo exatamente isso... Isso virou minha profissão e meu norte, tentar com meu trabalho que a vida das pessoas seja um pouco menos triste.”


O futuro, para ele, segue aberto. “Tenho um sonho de trabalhar um Polichinelo, uma das máscaras da Commedia dell’Arte, e retomar o teatro de grupo. Também gostaria de fazer um super-herói, mas não os da Marvel, um sem nenhum superpoder, tendo que se virar para pagar o aluguel e mesmo assim salvar a humanidade.”


Entre suas referências, o cinema mexicano e argentino seguem como fontes de inspiração, além dos filmes coreanos que o surpreendem pela originalidade. “Fellini sempre me alegra”, confessa. E quando o assunto são livros, ele cita O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse. “Caiu em minhas mãos no momento de mais solidão e abandono, aos 16 anos, quando mudei do Uruguai para o Brasil. Outros foram importantes, mas o estrago já tinha sido feito.”


Roberto Birindelli por Jefferson Karnal
Roberto Birindelli por Vinícius Monchizuki 

Sobre o segredo de manter o frescor cênico após décadas de experiência, Berindelli resume: “Como andar de bicicleta. Uma vez que você se equilibra, o mais legal é sentir o vento no rosto e curtir a paisagem.”


Ao final da conversa, quando convidado a traduzir sua arte em um manifesto, o artista deixa ecoar a síntese de uma vida inteira de entrega.


“Estar presente, inteiro. Minhas feridas se transformaram em meus amuletos, e compartilho com outros os segredos de minhas cicatrizes.”

No palco ou fora dele, Roberto Birindelli parece sempre buscar o mesmo horizonte, aquele em que a dor se transforma em beleza e a arte se confunde com a vida.

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