Quando o poder tem voz de mulher negra
- Carlos Mossmann
- há 5 minutos
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Em um país que ainda tenta calar suas vozes, mulheres negras começam a ocupar o centro das decisões

Por séculos, decisões de poder foram tomadas sem a presença de quem mais sente seus efeitos. Aos poucos, esse cenário começa a mudar.
Publicada em 24 de julho, a Lei nº 15.177/2025 inaugura um novo tempo na paisagem corporativa brasileira. A norma determina que empresas públicas, estatais e suas subsidiárias garantam ao menos 30% das cadeiras em conselhos de administração para mulheres, incluindo negras e mulheres com deficiência. Mais que um gesto de equidade, é um passo em direção à reparação de uma história escrita por mãos que, por muito tempo, foram invisibilizadas.
A medida, que pode ser adotada voluntariamente por companhias privadas de capital aberto, convida o mercado a reconhecer o que sempre existiu: a potência de mulheres negras que, apesar do silenciamento histórico, seguem reescrevendo o próprio destino.
Para a advogada Dione Assis, especialista em Direito Empresarial, a nova legislação representa mais do que um avanço jurídico. “Essa lei vai além da representatividade. Ela muda a forma como as empresas tomam decisões. Ter mais mulheres nos conselhos é bom para os negócios e necessário para a sociedade”, afirma.
A aplicação será progressiva, com 10% de participação feminina na próxima eleição, depois 20%, até alcançar 30%. A norma também exige transparência, obrigando as organizações a divulgar anualmente dados sobre a presença de mulheres em cargos de liderança e sobre as diferenças salariais entre homens e mulheres. “As empresas agora precisam mostrar, com números, se estão sendo justas. Isso aumenta a transparência e pressiona por mudanças reais”, destaca Dione.

O descumprimento pode levar à suspensão de decisões dos conselhos, o que reforça a seriedade da medida. Em vigor desde julho, a lei sinaliza um avanço político e simbólico. Mas há algo que a legislação, sozinha, não traduz: o significado de existir como mulher negra em um país que historicamente tentou apagar essas vozes.
Dione Assis é advogada, pesquisadora, empreendedora e comunicadora. Doutora em Ciências Humanas, atua nas interseções entre direito, cultura e ciência, promovendo o debate sobre raça e gênero em espaços que, por séculos, negaram essa presença.
Sua trajetória se entrelaça à criação do Black Sisters in Law, rede que conecta mais de oito mil mulheres negras do campo jurídico em todo o Brasil. O movimento nasceu da necessidade de reconhecimento e pertencimento, em resposta a um silêncio que autoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Patricia Hill Collins identificam como estrutural.
Como lembra Gonzalez, mulheres negras foram duplamente oprimidas pela raça e pelo gênero e, ainda assim, tornaram-se testemunho vivo da resistência cultural e política nas Américas.
Dessa herança de resistência e intelectualidade nasce o trabalho de Dione, que transforma teoria em ação.
“O mercado não pode negar a nossa existência. Para quem dizia que não havia advogadas negras, havia sim. Temos cantoras, atrizes e advogadas negras. O que nos falta, como disse Viola Davis, é oportunidade. Não é coincidência termos hoje mais de oito mil conectadas. Há muitas outras, mas eu posso dizer o nome, o CEP e o CPF dessas oito mil. Nós existimos”, afirma.
A rede surgiu como espaço de acolhimento e hoje é uma plataforma de fortalecimento coletivo, que busca romper o isolamento dessas profissionais nos espaços de poder, garantindo que sua presença seja percebida, respeitada e valorizada. “Primeiro, precisamos dizer ao mercado que existimos estando lá. Não dá mais para dizer que reconhece e continuar impedindo o acesso. O Black Sisters in Law busca conexões com grandes eventos jurídicos, escritórios e departamentos jurídicos de empresas para mostrar que merecemos oportunidades reais”, explica Dione.
O movimento enfrenta preconceitos estruturais que ainda insistem em questionar a competência dessas profissionais. “Muitas vezes me perguntam de onde elas vieram, qual a qualidade da formação e em qual universidade estudaram. Já ouvi instituições dizendo que aceitariam contratá-las desde que viessem das ‘tops do Brasil’, como se o valor profissional estivesse no nome da faculdade. Mas o ponto de partida não é o mesmo e, por isso, essas mulheres trazem mais criatividade, compromisso e soluções. Elas precisam provar o próprio valor todos os dias, e isso as torna extraordinárias”, reflete.









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