A cadeira que acende encontros
- Carlos Mossmann
- há 2 dias
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Da intimidade do ateliê à Casa Arlette, a Cadeira Azul de Helena Kozuchowicz transforma conversa em retrato e faz do erro o caminho mais curto até a presença

Alguns pintam rostos; Helena Kozuchowicz pinta encontros. Quando a entrevistei, ela ainda recebia os convidados no ateliê, pincel em uma mão, escuta na outra, enquanto a Cadeira Azul organizava o espaço e o tempo da conversa. À primeira vista, o dispositivo cênico parece simples: um assento, um corpo, uma conversa. Logo se percebe, porém, que ali se monta um teatro de presenças, onde o silêncio fala, a cor guarda memória e o erro funciona como oráculo. Agora, essa experiência transbordou as paredes do ateliê: na exposição em cartaz na Casa Arlette, a artista reúne pintura, vídeo e fotografia para recompor a atmosfera desses rituais, com o tempo convertido em pigmento, respiração e gesto.
Para Helena, o erro é um deslocamento que abre frestas ao inesperado. Ela o entende ora como desobediência, ora como revelação, e nele encontra a verdade do retrato. “O erro na pintura nunca é acidente puro. É um deslocamento: às vezes desobediência, às vezes revelação.” O episódio com Gregório Duvivier tornou-se emblema: o olho direito não foi pintado, permaneceu um traço. O acaso devolveu Camões à conversa, conectando a obra do retratado à língua portuguesa que habita seu ofício. Na visão de Helena, coincidência não era o nome daquele encontro entre palavra e imagem. “Eu diria que não existe coincidência.”

Entre fala e figura, ela confia na presença que antecede o discurso. Há encontros em que o silêncio pinta mais do que qualquer frase: o corpo fala, a atmosfera se adensa e, nesse vazio sutil, o retrato encontra contorno. A delicadeza abre a porta, mas a verdade chega quando a pintura cessa a necessidade de agradar e registra tensões, não polimentos.
“A fidelidade do encontro está justamente em deixar que essa tensão apareça no retrato.”
A Cadeira Azul é porto, personagem e feitiço cromático. Acolhe quem chega, sustenta uma identidade própria e altera a ordem do tempo, deslocando a conversa do centro para um ponto oblíquo. Mudanças de cor ou forma mexeriam primeiro no ritmo e na confiança, pois a cadeira carrega um pacto invisível de presença que se rompe com pequenas variações.

Sua formação em arquitetura funciona como base silenciosa de composição e de olhar espacial. O desenho calculado, contudo, encontra na pintura o gesto arriscado, vivo, capaz de desmontar a estrutura. O quadro nasce justamente do atrito entre rigor e desordem.
As geografias moldam a paleta por dentro. Brooklyn, São Paulo e Rio aparecem como modos de estar, não como cenários. As estações se insinuam nas escolhas cromáticas: verões mais livres e solares; invernos mais íntimos e recolhidos. No Rio, encontros ao ar livre voltam à tela com temperatura própria, rumor e luz.
Alguns artistas sentam-se, invisíveis, ao lado dela. De Alice Neel, a coragem da frontalidade; de Lucian Freud, a densidade da carne; de Marlene Dumas, a liberdade da mancha; de Egon Schiele, a tensão do corpo e da linha; de Alberto Giacometti, a insistência do traço. Com Francis Bacon, mantém um desacordo fértil: admira a potência e a deformação, sem levar a violência ao limite.

Na Casa Arlette, Helena deseja que o visitante atravesse o clima dos encontros. Um vídeo devolve trechos de conversas, enquanto os retratos silenciam lado a lado, em diálogo. Fotografias reconstituem o contexto vivo de cada sessão. Nada se sobrepõe; tudo se complementa. A pintura respira; o som devolve cadência; o público circula entre tempos que se entrecruzam.
No contexto da cena carioca, a série se alinha aos debates atuais sobre retrato, presença e performance. Em meio a práticas expandidas que misturam imagem, som e corpo, a Cadeira Azul propõe um retrato-processo, em que a escuta partilhada substitui a pose e a presença do outro se constrói na fricção entre palavra e gesto. Ao transformar o ateliê em espaço de rito e a sala expositiva em campo de ecos, Helena participa de uma discussão mais ampla no Rio sobre como ver, ouvir e encenar o encontro.
“Presença” é cadência, modo de ocupar o espaço, arquitetura do olhar. Reconhece-se quando chega e dispensa esforço. A pintura, então, não precisa correr atrás. O encontro já está dado.”

Ao longo de três dezenas de retratos, oriundos de artes e ofícios diversos, Helena busca faíscas e cruzamentos improváveis: quando um ator pensa como pintor, um músico projeta como arquiteto, uma pintora se descobre performer. A pergunta inaugural acende o pavio: “Qual foi a faísca que a levou a seguir o caminho que escolheu?” As conversas torcem a paleta no meio do retrato; a cor escuta e responde. O conjunto não ilustra biografias: revela combustões.
Entre pincel e pausa, Helena captura o instante em que o outro acontece, quando um gesto revela uma história, um olhar inaugura uma presença e o cotidiano se abre, de súbito, para o enigma do encontro.
