Um clássico atemporal que reflete os dilemas do Brasil contemporâneo. Os Irmãos Karamázov chega ao palco do Sesc Pompeia em uma adaptação visceral, intensa e profundamente humana.

Uma família à beira do colapso: um pai corrupto e cruel, filhos marcados por amor e ódio, disputas por dinheiro, poder e redenção. Parece o enredo de uma série viciante, mas é muito mais do que isso: é Dostoiévski. É Os Irmãos Karamázov. Agora, o clássico da literatura mundial ganha vida no Sesc Pompeia, em uma adaptação que promete tirar o fôlego e deixar marcas profundas.
De 27 de fevereiro a 30 de março, o drama russo do século XIX transforma-se em um espelho do Brasil contemporâneo. O que Dostoiévski escreveu em 1880 permanece atual: o abismo social, o patriarcado sufocante, o autoritarismo que ameaça a liberdade e a culpa que corrói. Tudo isso ainda vive. Em mim. Em você. E no espetáculo, que combina intensidade, poesia e brutalidade na medida certa.
Dostoiévski explorou, como poucos, o abismo humano e a confusão de ideias e ideologias. Em Os Irmãos Karamázov, essas contradições se refletem nos filhos de Fiódor Karamázov, cujas visões de liberdade continuam a dialogar com os dilemas do nosso tempo: Dmitri, visceral e impulsivo, vive a liberdade como paixão e excesso. Ivan, crítico e racional, questiona a moralidade e a existência de Deus. Aliocha, espiritual, encontra a liberdade na fé e na compaixão. Já Smierdiakóv reflete a liberdade sem responsabilidade. Cada personagem oferece um sentido para a existência humana.

Sob a direção de Caio Blat e Marina Vianna, os dilemas de Dostoiévski ganham nova luz, sem aprisionar a obra no pedestal da literatura erudita. Aqui, o texto respira, vibra e sangra. Segundo Blat:
“Todos os aspectos sociais da Rússia czarista presentes no texto – o abismo social, o patriarcado, o autoritarismo, a religião decadente que explora e ilude o povo – podem ser perfeitamente compreendidos pelo brasileiro hoje. Não foi preciso fazer nenhuma transposição.”
O resultado é um retrato cruel e necessário do presente, marcado pela multiplicidade de vozes que se entrelaçam e chocam, sem se submeter a uma visão dominante. No palco, essa característica se traduz em corpos, vozes e música que se sobrepõem, criando uma experiência visceral.
A adaptação preserva a essência de Dostoiévski, que sempre foi popular em seu tempo, afinal, Os Irmãos Karamázov foi publicado como um folhetim. Não importa se você já leu o livro ou nunca ouviu falar dele. O importante é sentir, e isso o espetáculo provoca com maestria.

O elenco é um show à parte: 13 artistas alternam entre coro e momentos individuais, entregando atuações intensas. Nomes como Babu Santana, Luisa Arraes, Sol Miranda, Nina Tomsic, Lucas Andrade e Pedro Henrique Muller dão vida ao texto. Blat e Vianna também sobem ao palco, reforçando a ideia de que o teatro é um encontro visceral.
A música, criada ao vivo por Arthur Braganti e Thiago Rabello, é quase um personagem. Ela conduz e amplifica as emoções. Assim como o romance, a trilha sonora abre espaço para o inesperado, refletindo liberdade e caos. O cenário, assinado por Moa Batsow, transporta o público para um universo atemporal e brutal, enquanto os figurinos de Isabela Capeto trazem um toque poético.
Dostoiévski não oferece respostas fáceis. Ele nos deixa com dúvidas e ambiguidades, como as que cercam o assassinato de Fiódor Karamázov. Quem matou? Dmitri, tomado pelo ódio? Smierdiakóv, manipulável e sombrio? Ou Ivan, que consentiu com o silêncio? O narrador não dá certezas, apenas “os vermes da dúvida”. No palco, essas escolhas e responsabilidades ganham uma dimensão física e emocional. Cada personagem carrega seu abismo e desafia o espectador a mergulhar com eles. Afinal, como disse Bakhtin: “A consciência nunca se basta por si mesma, mas está em tensa relação com outra consciência.”

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